Maria Cristina Faber Boog
Em casa recebemos dois jornais por assinatura. Me surpreendeu o fato de que, em um espaço de apenas três dias, assuntos relativos à alimentação vieram ocupar espaços significativos desses jornais. Dois deles versavam sobre a constatação através de pesquisas do fato de que bebês já tomam refrigerante. O outro trazia uma análise do trabalho de uma jornalista que se dedica a investigar a fidedignidade de informações contidas nos rótulos de alimentos e denunciar informações enganosas. Ambas são contribuições importantes, por um lado de pesquisadores, por outro de jornalistas. Cada qual em seu papel. É importante que a informação científica não fique restrita aos periódicos científicos, mas que ela venha ao público que, afinal, mantém as Universidades Públicas onde, de fato, se faz pesquisa no Brasil. Por outro, é papel do jornalista desconfiar de tudo, averiguar e informar. Se os rótulos passam uma ideia distorcida sobre os produtos, a sociedade precisa ser informada e alertada a respeito disso, os órgãos de defesa do consumidor devem ser acionados e a legislação precisa ser aprimorada. Até aqui nada novo, tudo em seu devido lugar. Evidencia-se um crescente interesse pelos assuntos relativos à alimentação, o que é bom, pois trata-se de um tema central para a saúde.
Os atos de informar, educar e orientar compartilham algumas intenções, porém são ações com objetivos específicos e diferentes entre si. Para educar é preciso orientar, mas educar é mais do que orientar. Para orientar é preciso informar, mas só informar também não basta. Pressupõe-se, muitas vezes, que a capacitação do educador possa acontecer pela leitura de guias e documentos, pelo uso de materiais didáticos, vídeos, jogos e um sem número de objetos “didaticamente” desenvolvidos para esse fim. Isso me faz lembrar de três grandes mestres que tive: Rubem Alves, Paulo Freire e João Francisco Regis de Morais. Deste último lembro sempre a frase que muito me marcou: “Educação é encontro humano.” Rubem Alves falou do “espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.”, no qual a palavra, o diálogo (marca da educação freireana), o olho no olho fazem toda a diferença. Educação é algo que só acontece entre pessoas, espaço artesanal.
A reflexão que desejo compartilhar aqui é sobre a maneira como a Educação Alimentar e Nutricional vem sendo vista e desenvolvida em certos contextos. Na lei que rege a atuação do nutricionista, a Educação Nutricional é considerada uma atividade privativa do nutricionista. Nos documentos oficiais, especificamente no “Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas” ela é definida como “um campo de conhecimentos e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional…”. Até o momento não vi ninguém questionar esse paradoxo. A lei é arcaica ou o marco teórico é que pressupõe uma situação à margem daquilo que está estabelecido na legislação? O trabalho de pesquisadores e de jornalistas com os quais iniciei esta reflexão são exemplos de informações relevantes. Mas, e a educação? A tal da educação alimentar e nutricional. Quem faz? Como faz?
A inclusão do adjetivo “alimentar” justaposto ao “nutricional” na denominação do campo de conhecimento e de prática “educação alimentar e nutricional”, levou à abertura de um canal para que outros profissionais viessem a trabalhar nesse campo, uma vez que a prática alimentar pode ser analisada sob os mais diferentes aspectos. Isso foi bem-vindo, pois a nutrição está inserida neste contexto maior da alimentação humana. Porém, o aspecto nutricional é da competência de quem estudou nutrição. Criado o impasse: a quem compete então a educação alimentar e nutricional? Com que possibilidades e com quais limites? Ao longo do processo de construção da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e dos documentos correlatos a ela, percebi colegas aderindo às ideias com um certo entusiasmo “politicamente correto”, mas pouco crítico e pouco realista. Em algumas oportunidades cheguei a fazer esse alerta: não é porque uma política tão necessária e ansiada pela categoria está sendo gestada, que devamos concordar com tudo o que está ali colocado.
Em minhas atividades de consultora, já venho me deparando com preocupações de profissionais responsáveis por programas de educação alimentar e nutricional, relativas à necessidade de criar meios para garantir que estas atividades se voltem realmente à promoção da alimentação saudável, culturalmente referenciada, como preconizam os documentos. Ora, na medida em que o processo sai das mãos dos técnicos, a observância de princípios básicos de nutrição pode ir por água abaixo. E tem acontecido.
Também não é verdade que a educação alimentar e nutricional se fará apenas pelos meios de divulgação para o grande público, através das mídias sociais, de materiais impressos, joguinhos, etc. Mais do que nunca as ações profissionais nos âmbitos comunitários, de grupo e individuais, em ambulatórios e consultórios, também são necessários. Quando maior o nível de informação, mais frequentes e complexos são os questionamentos.
As ações desenvolvidas pelos nutricionistas no campo da educação alimentar e nutricional estão se diversificando e sendo sistematizadas por meio de métodos e nomenclaturas diversas. Mas não nos esqueçamos de que lidar com o comportamento humano é sempre um ato educativo. Mais do que nunca, compreender profundamente a natureza do processo educativo é fundamental. É necessário estar ciente de que a educação junto com a nutrição está presente em todas as ações profissionais nas quais se busca, enfim, melhorar a vida das pessoas melhorando a sua relação com a alimentação. As informações de caráter epidemiológico, as tendências no consumo de alimentos e as informações disponíveis sobre a evolução do estado nutricional são também fundamentais para a seleção de ações e conteúdos em programas educativos. Não é trabalho para leigos. As bases teóricas da Educação Alimentar e Nutricional estão neste tripé: ciência da nutrição, ciências humanas (pedagogia, psicologia, psicanálise, sociologia, antropologia) e epidemiologia. É por meio desse olhar cuidadoso e multidisciplinar que as ações de educação em nutrição devem ser concebidas e desenvolvidas. Por quem? Com que formação? Com quais conhecimentos? Com que objetivos? Com quais critérios técnicos e éticos?
31/08/2015